O texto de hoje foi escrito pela autora convidada Emanuela Siqueira.
Não há como
falar em Geração Beat e não associar o termo aos nomes de Jack Kerouac, Allen
Ginsberg e William Burroughs. Os mais familiarizados incluirão Gregory Corso,
Neil Cassady e Lucien Carr. Mas é a santíssima trindade masculina,
primeiramente citada, que sempre deu o tom ao movimento contracultural, um dos
mais significativos da primeira metade do século XX. Uma geração cansada do American Way of Life, louca para pegar a
estrada, viver sem regras impostas, experimentando todas as sensações que o
corpo pode ter, seja com sexo, drogas ou qualquer tipo de prática necessária.
Como diria o próprio Kerouac em um trecho famoso de On The Road, eles queriam queimar
e queriam conviver com mentes e corpos que fizessem jus à essa filosofia.
A arte
desse pequeno grupo, que vivia entre a já caótica e cosmopolita Nova Iorque, a
boemia de San Francisco e o Eldorado chamado
México, era espontânea, direta e se comprometia apenas à si mesma. Mas essa
filosofia era basicamente masculina e heterossexual. Ou pelo menos é o que boa
parte dos textos sobre o grupo conta. No Brasil, Claudio Willer – um dos
pesquisadores mais prolíficos sobre o grupo Beat – não deixa de falar do grupo
de mulheres afiliadas ao movimento. Em um ou dois momentos do introdutório Geração Beat (L&PM), Willer comenta
sobre as mulheres que estiveram à sombra dos grandes nomes do movimento, e
especialmente cita Gregory Corso, que quando questionado sobre a falta de
mulheres em um determinado curso de escrita criativa, disse:
“Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias
as internaram , elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era
homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum
dia alguém escreverá a respeito.”
“Memórias
de uma Beatnik” (Veneta, 2013), de Diane Di Prima, é o primeiro, e único até
esse momento, trabalho traduzido de alguma das várias escritoras esquecidas -
pelo menos no Brasil - nas sombras dos homens da Geração Beat. O contexto
histórico do fim dos anos 40 e ínicio dos anos 50 não era facilitador para
mulheres que, apesar de serem coadjuvantes relevantes e intermitentes nos
romances de Jack Kerouac, por exemplo, eram relegadas apenas a esse tipo de
papel: mães, amantes ou esposas histéricas.
Foi pesquisando uma série de fotos
sobre a Geração Beat e encontrando uma da escritora Diane Di Prima, com cerca
de 70 anos - hoje ela tem 81 e pasmem, continua escrevendo - que me dei conta
do que li em “Memórias de uma Beatnik”. Aquela senhora, de camiseta e calças
largas, uma sandália com meia e segurando a mão de sua neta é a mesma
adolescente inquieta do final dos anos 40. Uma garota com olhar rápido e
questionador que ao passo que se deslumbrava com o mundo louco que se
desacortinava sobre seus olhos em momento algum demonstrava ingenuidade, mesmo
nos momentos mais impetuosos de suas escolhas. Diane sempre soube onde queria
chegar: na liberdade plena do seu corpo e de sua alma.
“Memórias de uma Beatnik” foi um
romance encomendado no fim dos anos 60 pelo editor Maurice Girondias que já
solicitava à Di Prima serviços para tornar romances sem sal em algo mais,
digamos, picante. Sabendo que Diane precisava de dinheiro, ele acreditou na
força de aliar as memórias dela durante os loucos anos 50 e o modo sutil e
libertário que Di Prima podia narrar cenas de sexo. “Memórias de uma Beatnik”
desempenha dois papéis que considero importantes: o primeiro em revelar a vida
de jovens que em pleno anos 50, uma época marcada pela chamada geração silenciosa e o retorno ao
conservadorismo, saíam de suas casas, deixando para trás suas famílias e
religiões, largavam a universidade, que apesar de oferecer uma formação ainda
as reprimia e seguiam suas próprias intuições. O segundo papel, que considero
nesse caso o principal, é o de tratar da sexualidade feminina de uma forma
simples, erótica e sem a imposição de um único gênero de uma relação
heteronormativa.
Muitos homens com que Diane se
relacionou sexualmente eram homossexuais que se sentiam atraídos ora pelo seu
jeito forte, desinteressado e dono de si, ora como uma forma de criar um laço
com o outro amante ou amado que outrora estivera com ela na cama. No começo de
“Memórias de uma Beatnik”, descrevendo a sua primeira relação sexual –
incrivelmente narrada mais como uma necessidade de finalmente ter seu corpo
livre para experimentações – Diane transa também com o amigo do seu parceiro,
um ato incrível em que ela percebendo os reais desejos dele o conduz para que
receba e dê prazer sem que se sinta de alguma forma culpado posteriormente.
Mas nem tudo funcionava conforme os
desejos da jovem Di Prima. Aliás, pouca coisa saia da forma que a cabeça
vanguardista da jovem gostaria. Em determinado momento, em que relata suas
relações com outras garotas - afinal, a Barnard College em que estudou, só
contava com garotas e as descobertas do corpo são infinitas - ela traz uma das
passagens mais tensas do livro em que não só denuncia uma falaciosa família de
classe média americana de época – temas como frigidez e incesto são apenas básicos
– ela sofre a primeira decepção com um dos seus pares, Tomi a garota que iria
tirá-la finalmente da casa dos pais. Diane diz “meus olhos leram em sua expressão o que meus ouvidos não puderam
aceitar de sua voz” quando uma garota que sonhava em ser artista e claro,
conhecia o corpo das mulheres como ninguém, opta pela família ao invés de seus
ideais.
Eu conhecera Tomi quando fui à faculdade pela primeira vez,
cerca de um ano e meio antes. Após a liberdade alegre e um tanto surreal da
escola secundária em Manhattan, a faculdade havia sido, de modo geral, uma
decepção absoluta: um lugar de estereótipos masculinos e femininos de suéter de
caxemira, e festas ruidosas e desagradáveis, regadas a cerveja. Lugar de um
corpo docente infeliz com olhares de soslaio para virgens lascivas de Little
Rock. Um lugar de partidas de bridge intermináveis, de festas superficiais, de
um tédio que se espalhava feito praga por um campus muito bonito e por cada
canto e fenda dos prédios cobertos de marfim. Um bom lugar para um assassinato,
certamente, em que, em vez disso, ocorria uma média de três suícidios por
semestre. (p.57)
A renúncia – ou grande dependência
– da família era uma característica recorrente e causadora de crises nas
mulheres hoje associadas ao movimento beat, assim como foi com os homens.
Quando Virginia Woolf, duas décadas antes, defende o “um teto todo seu” para
que uma mulher possa escrever, criar ou produzir qualquer coisa, talvez não
esperasse que essa geração de mulheres tivesse a ousadia de viver em pequenos
lofts, kitinetes ou mesmo quartinhos em condições precárias ansiosas em viver a
sua liberdade. A escritora Beat que mais tratou da memória do momento, Joyce
Johnson, conta em Minor Characters
(Coadjuvantes, 1983) que elas saiam de suas casas sem um modelo a seguir, e
mesmo que algumas tivessem lido o famoso ensaio de Woolf, as suas vidas em
cidades caóticas como Nova Iorque e San Francisco, além das pressões sociais de
suas famílias de classe média e religiosas, em nada condiziam com a forma de
vida praticado por Virginia, uma mulher com a sorte de ser herdeira de uma
família rica inglesa.
Nossos banquetes e
festas eram reuniões rústicas e fartas, nas quais, desde os meus doze anos, eu
me via me desviando dos assédios de um tio corpulento, que, para todos os
efeitos, estava me ensinando a dançar tango; nas quais eu tinha de ficar parada
para a inspeção que minha avó e as irmãs mais velhas de minha mãe faziam,
apalpando meus seios em desenvolvimento, puxando-os para fora com os dedos, ou
medindo meu traseiro com as mãos, enquanto comentavam em italiano meus pontos
fortes e fracos como futuro animal de procriação. (p.60)
Diane Di Prima criou cinco filhos sozinha e durante muito tempo entre os anos
60 e 70 viveu em comunidades em que ela praticamente era a única provedora do
grupo, ganhando dinheiro apenas escrevendo. A partir do capítulo 9 de “Memórias
de uma Beatnik” Di Prima relata uma das suas primeiras experiências vivendo em
uma espécie de comunidade, ela e mais três homens. É nesse momento que Di Prima
desenvolve algumas de suas primeiras ideias contrárias ao uso da pílula, que
segundo ela é apena uma bomba de hormônios machista. É até engraçado como nesse
romance, Diane seja considerada provocadora, promíscua e até irresponsável mas
na verdade só consigo enxergar independência diante do seu comportamento. Uma
das situações mais famosas de Diane é quando ela decidiu que seria mãe pela
primeira vez. Leia-se bem que “ser mãe” não supõe que ela gostaria de ser a
mulher de alguém ou que seu filho deveria ter um pai. E foi isso que ela fez,
apesar de assustar os homens no ínicio, quando comentava a sua vontade. Diane
Di Prima quebrou uma série de paradigmas e convenções. Foi mãe sozinha, foi
poeta em meio a uma alcatéia masculina, atravessou décadas seguindo firme seu
próprio modo de vida. E fez tudo isso praticamente sozinha.
Bom, vocês podem se
vangloriar, isso é coisa do passado, as garotas sortudas de hoje têm a pílula e
podem fazer o que quiserem, são tão livres quanto os homens etc. etc. A pílula,
a pílula, a pílula! Estou cansada de ouvir falar da pílula! Deixe-me contar
algumas coisas sobre a pílula. Ela engorda, a pílula. Ela dá fome. Deixa os
seios doloridos, com um ligeiro enjoo matinal; condena a mulher, que evitou a
gravidez, a viver em um estado perpétuo de início de gravidez: debilitada,
nauseada e propensa a cair no choro. E - ironoia suprema - deixa a mulher, que
finalmente alcançou a liberdade total para transar, muito menos propensa a
transar, diminuindo o desejo sexual. A pílula já cansou. (p.123)
Talvez lendo hoje, “Memórias de uma
Beatnik” pareça ser apenas um romance erótico em meio a um filão que de tempos
em tempos se renova. Mas diferentemente de alguns grandes best-sellers de momento, os relatos de Di Prima são acima de tudo
uma memorabilia de como ela se fez mulher e acima de tudo, como ela se fez uma
Beat, mesmo que a história, a crítica e o mercado editorial insistam em
diminuir a importância dessas mulheres. Diane Di Prima não foi a única, e cada
uma delas merece o seu lugar de destaque. A próxima vez que você olhar fotos da
Geração Beat, se pergunte quem são as mulheres vestidas de preto ao lado de
Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs e outros. Tenho certeza que
elas tem muito a lhe dizer.
(Emanuela Siqueira é pesquisadora e tradutora de escritoras da Geração Beat. Ela mantém o blog Notas Aleatórias)